O segredo dos urubus

Urubus são aves com um tipo de alimentação curioso, você bem sabe. Eles comem animais mortos, e nós – arghhh!!! – torcemos o nariz para isso! Mas tudo na natureza parece ter uma razão de ser. Junto com a carne podre, os urubus acabam ingerindo microrganismos que, para nós, humanos, e para muitos outros animais, causariam, no mínimo, uma baita dor de barriga. Por que será que com o urubu não acontece nada?

Ilustração Jaca

Urubus têm um papel ecológico fundamental: são muito importantes para a reciclagem do material orgânico, porque comem outros animais em decomposição. Chamados detritívoros (pelo hábito de comer detritos), eles exercem essa função de limpadores do meio ambiente com a ajuda de outros seres vivos também essenciais para quase todo tipo de vida na Terra, os microrganismos.

Esses seres microscópicos estão por todos os lugares: no ar, no solo, nos rios, lagos e oceanos, nos alimentos… E, também, nos corpos dos seres vivos, inclusive no seu. Podem ser encontrados na parte externa do corpo, como na pele, ou nas partes internas do sistema digestório, no estômago e intestino.

Proteção extra

Há no intestino dos animais, inclusive nos urubus, vários grupos de microrganismos, como bactérias, fungos, protozoários e vírus. Juntos, eles formam uma comunidade chamada microbiota intestinal, que é fundamental para a saúde do hospedeiro. Mas por quê? Porque esses microrganismos trabalham junto com as células de defesa do corpo do animal para protegê-lo de microrganismos invasores, isto é, aqueles que podem causar doenças. Além disso, ainda produzem vitaminas e outros benefícios para o hospedeiro se manter saudável.

Para que a microbiota intestinal funcione bem, o hospedeiro precisa oferecer aos microrganismos um ambiente favorável. E como ele faz isso? Simplesmente comendo! Essa ajuda mútua, chamada simbiose, acontece quando as partes – animal e microbiota – saem ganhando.

Prato predileto: carniça!

O tipo de alimentação dos urubus, como você já sabe, é a carniça, animais em decomposição. Para digerir esse alimento, a ave produz muito ácido em seu estômago, e isso faz com que o intestino desses animais seja considerado um ambiente extremo, isto é, um ambiente impossível de ser habitado por muitas espécies de microrganismos. Essa é uma das barreiras dos urubus contra os microrganismos invasores.

Com as condições de vida limitadas no intestino dos urubus, a microbiota desses animais é pouco variada. Ela é composta por um número pequeno de espécies, mas em grandes quantidades, chegando aos trilhões. Esse conjunto de bactérias da microbiota do urubu age para evitar que as bactérias ingeridas com a carniça provoquem algum mal ao animal – e é outra barreira ao seu adoecimento. Mas como elas fazem isso?

Animais em decomposição são a base da alimentação dos urubus.
Foto Alan Hendry/Unsplash

Bactérias X bactérias

As bactérias intestinais que vivem no organismo dos urubus não querem partilhar seus recursos com outros microrganismos. Uma forma eficiente de eliminar a concorrência competitiva é por meio da produção de moléculas antimicrobianas, partículas que bloqueiam o crescimento e a reprodução de bactérias indesejáveis.

Bactérias isoladas do cocô do urubu demonstraram a capacidade de inibir bactérias invasoras, como as das espécies Staphylococcus aureus, que podem ser encontradas também nos seres humanos e causar infecções, e Bacillus subtilis, que podem causar infecções em outros animais, como nos cachorros.

O intestino do urubu contém bactérias que combatem microrganismos invasores e mantêm a ave saudável.
Foto mycocarolina/Inaturalist/CC

Tudo em equilíbrio

Vimos que as bactérias da microbiota do urubu conseguem se unir para combater as bactérias invasoras. Então, podemos nos perguntar se uma determinada espécie de bactéria da microbiota poderia tentar dominar o intestino do animal, eliminando as demais espécies, não é? Até podemos. Mas, na natureza, nem tudo é simples.

De forma geral, as bactérias apresentam uma espécie de círculo em torno de si, chamado halo de inibição (veja na imagem). Quanto maior é o halo, maior a sua capacidade de combater outras bactérias. E o que se observa na microbiota dos urubus é que, quando unidas, as bactérias praticamente não apresentam halos. Isso significa que todas elas são muito resistentes, difíceis de serem eliminadas e, portanto, não gastam energia tentando combater umas às outras – vivem em equilíbrio.

A bactéria do intestino do urubu (círculos centrais) apresentou um halo de inibição (parte transparente) contra a bactéria invasora S. aureus, que está espalhada na placa.
Foto Bruno Rafael de Lima Moraes

Tecnologia que vem do urubu

Vimos que as bactérias da microbiota do urubu são capazes de produzir moléculas antimicrobianas, um mecanismo capaz de bloquear outras bactérias, que podem ser nocivas para a ave. Bom, se essas moléculas são capazes de impedir o crescimento de bactérias que causam doenças, será que podemos usá-las para melhorar a saúde humana? Podemos! E a biotecnologia já trabalha nisso!

A biotecnologia é um ramo da biologia que desenvolve tecnologias com diferentes finalidades a partir de organismos vivos. Assim, é possível isolar, purificar e utilizar as moléculas antimicrobianas da microbiota dos urubus em diversas aplicações. Elas poderiam ser usadas, por exemplo, em conjunto com antibióticos tradicionais para torná-los mais eficazes no combate a bactérias resistentes ao medicamento.

No geral, os urubus podem não estar entre as aves mais belas, nem entre as que têm hábitos alimentares muito apreciados. Mas essas aves podem estar bem próximas de inspirar avanços da ciência pelo bem da saúde humana. Quem diria, hein?!

Bruno Rafael de Lima Moraes
Centro de Ciências de Pinheiro
Universidade Federal do Maranhão

Marcos Pileggi
Departamento de Biologia Estrutural Molecular e Genética
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Matéria publicada em 01.07.2024

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