Conto de escola

*Machado de Assis

Ilustração Irena Freitas

A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia – uma segunda-feira, do mês de maio – deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o campo de Sant’Ana. (…) Morro ou campo? Tal era o problema! De repente, disse comigo que o melhor era mesmo a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão. (…)

Subi a escada, com cautela, para não ser ouvido pelo mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. (…) Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinquenta anos ou mais. (…)

Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.

Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Que me quereria o Raimundo? No fim de algum tempo – dez ou doze minutos – meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.

– Sabe o que tenho aqui?

– Não.

– Uma pratinha que mamãe me deu.

– Pratinha de verdade?

– De verdade.

Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei. (…) Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Minha reposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. (…) Relanceei os olhos pela sala, e dei com os de Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que outro nos observava, então, dissimulei; mas daí a pouco, deitei-lhe outra vez o olho, e – tanto se ilude à vontade! – não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.

– Dê cá…

Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição, e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. (…)

De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito. (…)

– Oh! Seu Pilar!  – Bradou o mestre com sua voz de trovão. – Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? – Disse-me o Policarpo.

– Eu…

– Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! – Clamou.

– Perdão, seu mestre… – solucei eu.

– Não há perdão! Dê cá a mão!

– Mas, seu mestre…

Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma cousa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. (…)

Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dois serem cinco. (…) De tarde faltou à escola.

Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dous meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda, sonhei que, ao tomar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo, nem escrúpulos…

De manhã, acordei cedo. A ideia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. (…)

Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E, contudo, a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, o outro da delação.

*Machado de Assis é considerado um dos maiores escritores brasileiros. Ele nasceu em 1839, no Rio de Janeiro, e morreu em 1908, na mesma cidade. Em Conto de escola, apresenta suas próprias peripécias no seu tempo de colégio – um tempo, aliás, em que os costumes eram bem diferentes dos atuais. Repare que a linguagem do texto traz termos que, hoje, já não usamos. Fica o convite para que, com a ajuda de um dicionário, você descubra seus significados e sinônimos!

Matéria publicada em 28.02.2025

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