O astrônomo azarado

Será que a falta de sorte pode atrapalhar o caminho para uma descoberta brilhante?

Ilustração Mariana Massarani

Algumas descobertas da ciência parecem contar com a sorte, como aconteceu com a penicilina. O médico e microbiologista Alexander Fleming estava estudando bactérias, quando percebeu que sua amostra havia sido contaminada por um fungo e que ele, o penicillium, era capaz de impedir o crescimento das bactérias. Bingo! Nascia ali o antibiótico. Poderíamos chamar isso de sorte aliada a uma grande capacidade de observação. Mas… E o contrário, será que acontece também? Será que existem cientistas que foram azarados? Parece que sim…

O astrônomo francês Guillaume Le Gentil era membro da Academia de Ciências francesa e já havia descoberto vários objetos celestes quando se juntou a um projeto internacional que pretendia medir com precisão a distância da Terra ao Sol. Para isso, ele fez observações precisas sobre o planeta Vênus, no momento em que ele passa entre o Sol e a Terra, o que ocorre duas vezes a cada cem anos, aproximadamente. Uma boa oportunidade se deu em 6 de junho de 1761, e Guillaume partiu em uma expedição, em março de 1760, para observar o fenômeno de uma localidade no sudeste da Índia chamada Pondicherry, que, na época, pertencia à França.

A onda de azar de Guillaume começou ali, pois estourou a Guerra dos Sete Anos, entre a França e a Grã-Bretanha, o que não permitiu que sua embarcação chegasse ao destino. Mas ele não se deu por vencido, e conseguiu embarcar em uma fragata em março de 1761, poucos meses antes do dia da observação. Mas o navio passou cinco semanas no mar, sendo desviado várias vezes por ventos desfavoráveis. Quando finalmente chegou em Pondicherry, soube que os britânicos tinham invadido a cidade, e ninguém da embarcação poderia desembarcar. A fragata teve que retornar. No grande dia, o céu estava limpo, mas não era possível realizar uma observação aceitável de dentro do navio balançando, e Guillaume teve seu objetivo frustrado.

Sabendo que haveria uma nova oportunidade oito anos depois, em 1769, Guillaume partiu para Manila, nas Filipinas, que, na época, era uma colônia espanhola e um bom lugar para tal observação. Os espanhóis, porém, desconfiaram que poderia se tratar de uma espionagem francesa e não permitiram a estadia do astrônomo. 

Como a primeira localidade, Pondicherry, havia sido devolvida à França em 1763, após um tratado de paz, Guillaume se esforçou para tentar novamente de lá. Conseguiu desembarcar no local em março de 1768, construindo um observatório para realizar a observação de Vênus. No dia 4 de junho de 1769, data do evento, o céu ficou nublado no local, e não foi possível observar nada. Para piorar, ele ficou sabendo que em Manila, onde ele pretendia realizar a observação, as condições estiveram favoráveis e ele poderia ter conseguido de lá. 

Como a próxima vez em que seria possível realizar a observação demoraria mais de cem anos, Guillaume percebeu que havia perdido definitivamente a oportunidade. Muito desanimado, destruiu o observatório e a casa que havia construído em Pondicherry. Frustrado, iniciou a viagem de volta à França. Mas, quando o navio estava ancorado na Ilha de Reunião, em Madagascar, na África, ele caiu no mar e foi dado como desaparecido. Permaneceu na ilha por quase um ano, sem documentos nem dinheiro, até conseguir uma carona para a França em outro navio. Ufa! O azarado finalmente teve sorte? Que nada! Chegando na França, ele descobriu que havia sido dado como morto, seus bens tinham sido divididos entre os herdeiros, sua esposa havia casado novamente, e sua posição na Academia de Ciências havia sido preenchida. Com muita persistência e ajuda, ele conseguiu, pelo menos, reconquistar seu lugar como cientista. 

O que você acha? Guillaume foi azarado ou o que ele passou foi pura coincidência?


eder_molina

Eder Molina
Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas
Universidade de São Paulo

Sou paulista, e já nem lembro quando nasci… Sempre fui curioso sobre o porquê das coisas, e desde criança tinha meu clubinho da ciência. Hoje sou professor de Geofísica e continuo xereta e buscando aprender muitas coisas, principalmente sobre a Terra e o Sistema Solar.

Matéria publicada em 30.08.2024

Comentários (4)

  1. Que azarado, coitado!

    1. Olha, eu também achei…
      🙂

  2. oi pessoal da CHC, eu amei a história de Guillaume , mas que tal criar um texto sobre os homens da caverna eu iria amar . Obrigada e beijão .

    1. Que bom que você gostou, Cecília! 😀

      Puxa, de homem da caverna eu só tenho a aparência, não é minha área de especialidade. Mas com certeza você vai encontrar algo no site da CHC, dá uma procurada…

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