A história no cocô

Olhando para múmias expostas no museu, muita gente esquece: elas já foram gente como a gente. Pessoas que comiam e, logo, faziam cocô! Pode parecer nojento, mas existem pesquisadores que estudam justamente o cocô de múmias para entender como era a saúde das pessoas do passado. Eles olham para os restos fecais e procuram por resquícios de comida e parasitas indesejados, como os vermes.

Essas pesquisas são feitas principalmente em múmias naturais, ou seja, corpos que foram preservados sem que ninguém tenha feito esforço para isso – nas múmias egípcias, por exemplo, não é possível encontrar restos de fezes, pois os órgãos internos eram retirados no processo de conservação do corpo.

Cocô de múmia, ou coprólito, dentro da pélvis de uma múmia brasileira de 600 anos encontrada em Minas Gerais (Foto: Luciana Sianto)

Cocô de múmia, ou coprólito, dentro da pélvis de uma múmia brasileira de 600 anos encontrada em Minas Gerais (Foto: Luciana Sianto)

Karl Reinhard, pesquisador da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, estuda esses materiais há mais de 30 anos. Ele e seus colegas buscam vermes e outros parasitas no cocô das múmias, pois assim ficam sabendo mais sobre como as doenças se transformaram e se espalharam pelo mundo ao longo da história. “Para nós, parasitas são muito interessantes, pois olhar para eles é olhar diretamente para a causa de doenças que afligiam o homem no passado e que, muitas vezes, ainda estão aí hoje”, conta.

Uma das coisas que o pesquisador descobriu olhando para fezes fossilizadas (também chamadas de coprólitos) de vários lugares do mundo é que as pessoas que viviam na Europa e nas Américas durante a pré-história tinham muitos vermes em comum, como a lombriga. Mas as infestações de vermes eram muito mais comuns por lá do que por aqui.

Por que essa diferença? O pesquisador acredita que a resposta também está nos coprólitos. Analisando os restos de comida nos cocôs de múmias com mais oito mil anos, ele percebeu que os habitantes das Américas comiam muitas plantas medicinais, que funcionavam como remédios contra os vermes.

Múmias brasileiras do século 18 descobertas debaixo de Igreja em Minas Gerais ainda conservam o conteúdo do intestino (Foto: Escola Nacional de Saúde Pública/Ensp)

Múmias brasileiras do século 18 descobertas debaixo de Igreja em Minas Gerais ainda conservam o conteúdo do intestino (Foto: Escola Nacional de Saúde Pública/Ensp)

“Em coprólitos de indivíduos da América do Norte, identificamos plantas como o salgueiro e o agrião, usadas ainda hoje pelos indígenas para controlar verminoses”, explica o cientista. “Aqui no Brasil, no Piauí, encontramos outras plantas, como o miroro e o embiruçu, usadas com a mesma finalidade”.

Além de matar a nossa curiosidade sobre as doenças do passado, estudos como os de Karl podem ajudar a controlar as doenças de hoje com o conhecimento sobre as plantas medicinais dos povos antigos. “Os vermes ainda são um dos grandes problemas de saúde atuais. Existem 1,4 bilhão de pessoas no mundo infectadas com lombrigas, por exemplo”, alerta o pesquisador. “Se entendermos como os nativos americanos controlavam essas infecções, podemos usar substâncias dessas mesmas plantas para tratar as pessoas hoje”.

Troca-troca de vermes
Os vermes podiam ser mais comuns na Europa, mas ainda assim tiravam o sono dos povos americanos mesmo antes da colonização. “Muita gente tem a ilusão de que todas as infecções e doenças só chegaram aqui com os europeus”, conta a epidemiologista Daniela Leles, da Universidade Federal Fluminense. “O curioso é que muitas doenças, como a sífilis e o bicho-do-pé, fizeram justamente o caminho contrário: saíram da América para o resto do mundo”.

Outro exemplo de parasitose que já estava por aqui antes da colonização é a equinostomíase. A infecção é causada pelo verme do Echinostoma sp, que vive no organismo de pequenos mamíferos e pode infectar o ser humano pela ingestão de água e peixes contaminados com as fezes desses animais. Essa doença hoje é rara nas Américas e mais comum na Ásia, onde se come muito peixe cru. Por isso, até pouco tempo acreditava-se que o parasita havia chegado à América trazido pelos colonizadores. Porém, análises feitas em coprólitos retirados do corpo de uma múmia de 600 anos encontrada em Minas Gerais, mostram que a doença já estava presente por aqui antes da colonização.

Provavelmente, esse parasita chegou à América dentro do organismo de animais antes da povoação humana e passou a infectar o ser humano pela alimentação assim que ele chegou por aqui”, diz a arqueoparasitologista Luciana Sianto, da Fundação Oswaldo Cruz. “Na pré-história, era difícil acender fogueiras e podia acontecer de as pessoas comerem peixe cru ou mal cozido, facilitando a contaminação”.