O liquidificador e a montanha de ossos

Todos gostávamos de ir à casa de Neném. Se existia uma novidade no mundo, era lá que primeiro a encontraríamos. Panelas, pratos, canetas e móveis, sempre tudo novo e diferente. Mas eram os eletrodomésticos que faziam sucesso. Foi lá que vi pela primeira vez um aspirador de pó, uma televisão e um liquidificador vermelho.

O liquidificador vermelho era a sensação na casa de Neném. Frutas, grão e ossos – era capaz de reduzir tudo a pó. (foto: Mark Anderson / Free Images)

O liquidificador vermelho era a sensação na casa de Neném. Frutas, grão e ossos – era capaz de reduzir tudo a pó. (foto: Mark Anderson / Free Images)

Este último fazia muito sucesso. Principalmente porque ficava no meio da sala, como um objeto de arte, imponente e único, sobre uma grande mesa retangular. Era ao redor dele que se davam verdadeiros eventos que reuniam a molecada da rua da Jaqueira. Dona Jussara, mãe de Neném, preparava sucos, sopas, bolos e outros doces no reluzente eletrodoméstico. Porém, sucesso garantido era quando ela extraía tutano de dentro dos ossos, para preparar a geleia de mocotó.

Os ossos estalavam e eram esmagados, sem dó ou piedade, numa velocidade jamais vista em qualquer lugar do universo. Não sobrava osso sobre osso. Todos nós, em silêncio absoluto, observávamos o incansável liquidificador vermelho em sua árdua tarefa de quebrador de ossos. Até aplaudíamos!

Algo parecido ocorre na natureza, antes de os organismos se transformarem em fósseis. Geralmente, animais grandes – como dinossauros ou mamíferos – não conseguem se preservar por completo. Ao morrerem, são transportados por grandes distâncias antes do sepultamento final, e isto faz com que seus ossos se desarticulem e quebrem, formando um enorme emaranhado de restos de diferentes espécies.

Para fazer mocotó, dona Jussara quebrava uma montanha de ossos, que daria inveja a qualquer dinossauro faminto. (foto: Ismar de Souza Carvalho)

Para fazer mocotó, dona Jussara quebrava uma montanha de ossos, que daria inveja a qualquer dinossauro faminto. (foto: Ismar de Souza Carvalho)

Muitas vezes, o transporte é realizado pelos rios. O resultado é uma bagunça de restos de ossos e de pedras que, ao se chocarem durante o fluxo da água, vão sendo desgastados e quebrados. No local final de deposição, temos uma mistura de fragmentos ósseos com vários tamanhos, pertencentes a diferentes animais.

Nos canais dos rios, concentram-se os resíduos que são transportados pelas águas. Os antigos depósitos fluviais são os melhores locais para encontrarmos ossos fósseis. (foto: United States Army Corps of Engineers)

Nos canais dos rios, concentram-se os resíduos que são transportados pelas águas. Os antigos depósitos fluviais são os melhores locais para encontrarmos ossos fósseis. (foto: United States Army Corps of Engineers)

Antigos leitos de rios são locais importantes para a prospecção paleontológica, já que neles podem se concentrar os restos de animais que viveram na região e que, ao morrerem, tiveram suas carcaças levadas pelas águas.

Este é um depósito de um canal fluvial. Observe a quantidade de ossos fossilizados que ali se acumulou e que os paleontólogos estão escavando. (foto: Ismar de Souza Carvalho)

Este é um depósito de um canal fluvial. Observe a quantidade de ossos fossilizados que ali se acumulou e que os paleontólogos estão escavando. (foto: Ismar de Souza Carvalho)

Bem, como tudo o que é vivo um dia morre, o liquidificador vermelho também teve seu fim: um enorme osso encravado em sua hélice transformou-o num amontoado de pedaços de vidro e ferro espatifados pelo chão. Um final infeliz, mas que, à semelhança dos dinossauros e outros bichos, deixou sua marca nos tempos da pré-história.

Matéria publicada em 22.05.2015

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Ismar de Souza Carvalho de Souza Carvalho

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