A arte de transformar emoções em livros

Tenho uma história para contar a você. Uma história sobre uma menina chamada Chaya. Ela tinha menos de dois anos de idade quando veio para o Brasil. E, é claro, não chegou aqui sozinha: sua família havia decidido partir da Ucrânia, em 1921, por causa da Primeira Guerra Mundial. Com isso, conseguiram deixar para trás a miséria que assolava a Europa, mas não escaparam de dificuldades no nordeste brasileiro. Para Chaya – ou melhor, Clarice, como a menina passou a ser chamada no Brasil –, a maior delas talvez tenha sido a que viveu quando tinha apenas nove anos de idade: a perda da mãe. É, a infância dessa garota não foi fácil. Mas ela aprendeu, desde cedo, a transformar seus medos e angústias em histórias que fugiam do tradicional. Por isso, em 2010, quando Clarice Lispector completaria 90 anos, convido você, pequeno leitor, a conhecer essa autora, que fez livros para adultos e crianças!

Clarice Lispector disse certa vez: “Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas” (foto: Claudia Andujar, capa do livro 'Clarice,' da editora Cosac Naify).

Nasce uma escritora
Clarice Lispector passou a infância em Maceió, capital de Alagoas, e em Recife, capital de Pernambuco. Já aos quatro anos, adorava inventar brincadeiras e dar nomes a seus lápis e suas canetas. Fazia muito sucesso imitando os gestos da sua professora do jardim de infância. E, claro, já escrevia. “Quando comecei a ler, comecei a escrever também. Pequenas histórias”, disse a escritora, certa vez.

Desde então, sua escrita já era diferente. Como ela mesma contou, enquanto outros pequenos escritores, que enviavam contos para a seção infantil de um jornal, escreviam histórias que começavam com “era uma vez”, as de Clarice eram sobre sensações: “Eram contos sem espada, sem piratas. Então, ninguém queria publicar”.

O nome de batismo de Clarice – Chaya – significa “vida” na língua hebraica (foto: Arquivo-Museu da Literatura Brasileira, Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro).

Clarice também escrevia para a mãe, que ficou paralítica depois de adquirir uma doença em meio aos perigos da Primeira Guerra Mundial. Contava-lhe histórias mágicas, que sempre tinham um final feliz e podiam salvá-la.

Como explica o historiador norte-americano Benjamin Moser, no livro que publicou sobre a escritora, considerado o mais completo já feito até hoje sobre a sua trajetória, “Clarice dedicaria toda a sua vida a escrever”. E, assim, sua escrita levaria para o papel as suas lembranças de menina. Fossem felizes ou tristes.

Sem desperdiçar palavras
Clarice sempre gostou muito de ler e escrever, mas foi aos 13 anos que decidiu se tornar escritora. Isso aconteceu depois que a menina se encantou pelos livros de um escritor alemão chamado Hermann Hesse. Ele escrevia como Clarice gostava e como ela própria passaria a escrever: de um jeito livre, sobre a existência e as sensações.

Aos 23 anos, porém, a corajosa jovem não apenas escreveu, mas decidiu publicar seu primeiro livro: Perto do coração selvagem. Só que ele não foi aceito logo. É que Clarice Lispector levava, para as suas histórias, temas universais, diferentes dos temas nacionais até então predominantes nos livros brasileiros da época. Seu desafio era falar sobre o que acontece dentro da gente – emoções, sensações –, tentando encontrar, como definiu Benjamin Moser, “o porquê da existência humana num mundo que nunca faz sentido”.


“Clarice não descrevia paisagens nem desperdiçava palavras. Ela escrevia para dentro de si, para dentro da própria linguagem”, conta a crítica literária Claudia Nina, que estuda a obra da escritora. “Não chega a ser um texto de palavras difíceis, ou seja, seu leitor não precisa de dicionário. Mas precisa ter certa disposição para seguir adiante”.

Escrevendo para crianças
Mas as palavras de Clarice não se voltaram apenas para os adultos e para o universo dos sentimentos e da existência. Quando completou seis anos, Paulo, o filho caçula da escritora, pediu à mãe que escrevesse algo para ele. Adivinhe, então, o que aconteceu: começava aí a literatura de Clarice… para crianças!

Um coelho que pensa ou um cachorro que observa o que acontece a sua volta como gente de verdade. Eram assim os personagens dos livros infantis de Clarice Lispector.

Quando o assunto era escrever para os pequenos, a autora era uma verdadeira mãe. Muito maternal, ela contava histórias de bichos, como a do coelho pensante, do cachorro Ulisses e da galinha Laura. “Os adultos podiam até achá-la complicada, mas as crianças entendiam tudo o que ela falava!”, conta Benjamin Moser.

A hora da estrela
Quando começou a escrever seu último livro, A hora da estrela, Clarice Lispector já estava doente. Nessa obra, a escritora mostrou aos leitores do que realmente era feito o seu estilo, ou seja, como era o seu jeito de escrever. No entanto, em dezembro de 1977, dois meses depois de A hora da estrela chegar às livrarias, Clarice Lispector faleceu de câncer no ovário. Como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade quando ela morreu, “Clarice veio de um mistério, partiu para outro”. Mas deixou, em cada um de seus livros, também um capítulo da própria vida para ser desvendado.

Carolina Drago
Instituto Ciência Hoje/RJ