História de pescador

Sempre gostei de peixes – em especial os fritos, mas para isso era necessário pescá-los. Com minha vara e minhocas especialmente coletadas debaixo das folhagens úmidas, fazia planos mirabolantes para que a pescaria fosse excepcional. Começava com a seleção das minhocas: apenas as que pulavam incansavelmente serviriam de isca. Depois, escolhia a cor do bambu que serviria para a vara – os verdes eram meus favoritos.

Como era bom pescar! Que surpresas me esperavam nas águas turvas do lago de minha bisavó Ida. (foto: Jeff Hitchcock / Flickr / CC BY 2.0)

Como era bom pescar! Que surpresas me esperavam nas águas turvas do lago de minha bisavó Ida. (foto: Jeff Hitchcock / Flickr / CC BY 2.0)

Vara e iscas selecionadas, seguia determinado para o grande lago de águas turvas e lamacentas que circundava a casa de bisavó Ida. Agachado na margem do lago, aguardava o momento exato de fisgar minha presa – os pequenos lambaris que abundavam especialmente nas épocas de chuva.

Eu adorava ficar na sombra da goiabeira esperando a isca tilintar! Mas acho que o melhor mesmo era a expectativa. O que viria na próxima fisgada? Um peixão ou apenas mais um peixinho… Ficava ali por horas, com a imaginação mergulhada no nas águas escuras daquele lago piscoso.

Um dia, quando começou a chover e pensei: “Bom sinal. É hoje que surpreenderei a todos!” Logo depois, a vara de pescar envergou. Puxei. Envergou ainda mais. Comecei, então, uma batalha como a dos mais impetuosos pescadores. Puxa daqui, puxa dali. E puxa acolá! O peixe devia ser grande e bravo, pois não saía de jeito nenhum da água. Minha empolgação aumentava com a dificuldade encontrada. Vou chamar minha bisavó, avós, pai, mãe, tio, tias, primos, primas e até os vizinhos para comer este peixe! E continuava a luta…

Os paleontólogos são como os pescadores – têm sempre a expectativa de que descobrirão o maior, o mais bonito ou então mais diferente de todos os peixes. (foto: Ismar de Souza Carvalho)

Os paleontólogos são como os pescadores – têm sempre a expectativa de que descobrirão o maior, o mais bonito ou então mais diferente de todos os peixes. (foto: Ismar de Souza Carvalho)

A empolgação que senti naquela manhã de pescaria só se compara à que tenho hoje quando procuro por fósseis. Em especial, claro, quando são fósseis de peixes. A sensação de minhas antigas pescarias se repete: “hoje descobrirei o maior de todos!”, ou, então, ”coletarei o mais bonito e interessante fóssil de peixe, algum que jamais foi estudado”.

Nos trabalhos de campo da paleontologia, a expectativa está sempre presente. Teremos ou não sucesso com alguma descoberta? Às vezes, a descoberta acontece. Mas não é como o trabalho isolado de um pescador solitário: para as grandes descobertas em qualquer área da ciência, faz-se necessário o trabalho em grupo. No caso da descoberta dos fósseis, por exemplo, é preciso fazer o levantamento detalhado de informações acerca das rochas que existem numa região, da idade das mesmas e sobre a existência de exposições de rochas nas margens de estradas ou rios.

Descobrir os fósseis não é fácil. As rochas empilhadas escondem os mistérios da história da vida na Terra. (foto: Ismar de Souza Carvalho)

Descobrir os fósseis não é fácil. As rochas empilhadas escondem os mistérios da história da vida na Terra. (foto: Ismar de Souza Carvalho)

Como as rochas empilhadas que escondem os mistérios da história da vida, um lago de águas turvas também pode nos surpreender. Naquela manhã chuvosa, em que lutava ardentemente com o peixe que mudaria a história de minha vida, descobri, após muita batalha, que não era um peixe que me puxava, e sim uma cobra enorme que, enroscada na linha e depois na ponta da vara, abria uma bocarra de amedrontar jacaré.

Corri muito… Para que tal história não passasse de mais uma daquelas que são contadas por pescadores, ao chegar avisei à minha bisavó Ida: “vim correndo, vó, só porque senti o cheirinho de seus bolinhos-de-chuva!”

Matéria publicada em 02.05.2016

COMENTÁRIOS

  • Ermud

    Parabéns pela analogia .
    Pescar é pesquisar!!!

    Publicado em 18 de janeiro de 2021 Responder

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Ismar de Souza Carvalho de Souza Carvalho

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